Madeline, apenas cinco anos, pulou no colo de seu pai.
— Você já terminou de comer?
— pergunta ele.
Ela sorri e bate com a mãozinha na barriga.
— Não cabe mais nada.
— Comeu o bolo da vovó?
— Um pedaço inteirinho!
Joe olhou para sua mãe, que
estava no outro lado da mesa.
— Parece que estamos todos
satisfeitos. Não poderemos fazer mais nada esta noite a não ser ir para a cama.
Madeline pôs suas pequenas
mãozinhas nos lados do rosto de seu pai.
— Mas papai, hoje é véspera de
Natal. Disse que poderíamos dançar.
Joe fingiu não se lembrar.
— Disse isso? Não lembro de
haver dito nada sobre dançar.
A vovó sorriu e passou a mão
pela cabeça da menina enquanto começava a recolher as coisas da mesa.
— Mas papai — rogou Madeline
—, nós sempre dançamos na véspera de Natal. Só você e eu, lembra?
Um sorriso se desenhou sob o
grosso bigode do pai.
— É claro que lembro, querida.
Como poderia esquecer?
E dizendo isso, ficou em pé,
tomou a mãozinha dela na sua e, por um momento, só por um momento, sua esposa
estava viva de novo e os dois entravam no quartinho para passar juntos outra
véspera de Natal como outras tantas que tinham passado, dançando até a
madrugada.
Teriam podido dançar o resto
de suas vidas, mas veio a inesperada gravidez e as complicações. Madeline
sobreviveu, mas sua mãe não. E Joe, o rude açougueiro de Minnesota, ficou
sozinho para criar Madeline.
— Vêm papai — lhe disse,
puxando-o pela mão —. Dancemos antes de que cheguem.
Ela tinha razão. Logo soaria
a campainha da porta e os familiares encheriam a casa e a noite seria já algo
do passado.
Mas por enquanto, só estavam
papai e Madeline.
*
A rebeldia atacou o mundo de
Joe como uma tempestade de neve a Minnesota.
Quando já tinha idade
suficiente para dirigir um automóvel, Madeline decidiu que era suficiente
adulta para dirigir sua própria vida. E essa vida não incluía seu pai.
«Devia ter imaginado», diria
Joe mais tarde, «mas por minha vida que não o fiz». Não soubera o que fazer.
Não sabia como lidar com narizes com piercings nem com blusas apertadas. Não
entendia de baladas nem de notas ruins. E, o que é pior, não sabia quando falar
e quando guardar silêncio.
Ela, por outro lado, sabia
tudo. Quando falar com seu pai: Nunca. Quando ficar calada: Sempre. Entretanto,
as coisas eram inversas com seu amigo da rua, aquele moço fracote e tatuado.
Não era um bom moço, e Joe sabia.
Não ia permitir que sua filha
passasse a véspera de Natal com esse moço.
«Passará a noite conosco,
senhorita. Comerá o bolo da vovó na ceia em sua casa. Celebraremos juntos a
véspera de Natal».
Embora estivessem sentados à
mesma mesa, perecia que estavam em pontos diferentes da cidade. Madeline
brincava com a comida sem dizer uma palavra. A avó tentava conversar com Joe,
mas ele não estava com humor para conversar. Uma parte dele estava furiosa; a
outra parte estava desconsolada. E o resto dele teria dado qualquer coisa para
saber como falar com esta menina que antigamente se sentava em seus joelhos.
Chegaram os familiares
trazendo com eles um bem-vindo final ao desagradável silêncio. Com a sala cheia
de ruídos e gente, Joe se manteve em um extremo e Madeline no outro.
«Ponha música, Joe»,
lembrou-lhe um de seus irmãos. Assim fez.
Pensando que seria uma boa
idéia, dirigiu-se para onde estava sua filha: «Dançaria com seu papai esta
noite?»
Pela forma como ela bufou e
se voltou, poderia se pensar que lhe havia falado algo insultante. Diante da
vista de toda a família, dirigiu-se para a porta da rua, abriu-a, e se foi,
deixando seu pai sozinho.
Muito sozinho.
*
Madeline voltou essa noite
mas não por muito tempo. Joe nunca falhou com ela, para que ela fosse embora.
Depois de tudo, o que significa ser filha de um açougueiro? Em seus últimos
dias juntos, ele fez tudo o que pôde.
Cozinhou a comida favorita
dela. Ela não tinha apetite.
Convidou-a para ir ao cinema.
Ela se fechou em seu quarto.
Comprou-lhe um vestido novo.
Ela não agradeceu.
Até que chegou aquele dia
primaveril em que ele saiu cedo de seu trabalho para estar em casa quando ela
chegasse da escola.
Desde esse dia, ela nunca
mais voltou para casa.
Um amigo a viu perto da
estação de ônibus, junto com seu namorado. As autoridades confirmaram a compra
de duas passagens para Chicago; para onde foram dali, ninguém sabe.
*
O rapaz magrelo das tatuagens
tinha um primo, que trabalhava no turno da noite em uma loja ao sul de Houston.
Por uns poucos dólares por mês permitia aos fugitivos permanecer em seu
apartamento de noite, mas durante o dia tinham que sair dali.
Não havia problemas. Eles
tinham grandes planos. Ele seria um mecânico e Madeline procuraria trabalho em
uma loja de departamentos.
Obviamente, ele não sabia
nada de automóveis, e ela muito menos sobre como conseguir um trabalho, mas as
pessoas não pensam nessas coisas quando estão intoxicadas de liberdade.
Depois de duas semanas, o
primo mudou de opinião. E no dia em que lhes comunicou sua decisão, o magrelo
tatuado também deu a conhecer a sua. Desse modo, Madeline se encontrou com a
noite pela frente, sem ter um lugar onde dormir nem uma mão que a sustentasse.
Foi a primeira de uma série
de muitas noites assim.
Uma mulher no parque lhe
falou de um lugar para desamparados perto da ponte. Por uns poucos dólares ela
poderia obter um prato de sopa e uma cama de armar.
Uns poucos dólares era tudo o
que ela tinha. Usou sua mochila como travesseiro e sua jaqueta como manta. O
quarto era tão barulhento que não conseguia dormir. Madeline virou a cabeça
para o lado da parede e pela primeira vez em muitos dias, pensou no rosto
barbudo de seu pai e em como lhe dava um beijo todas as noites. Mas quando as
lágrimas quiseram brotar de seus olhos, resistiu ao choro. Colocou a lembrança
bem fundo em sua memória e decidiu não voltar a pensar em sua casa.
Tinha chegado tão longe que
já era impossível voltar.
Na manhã seguinte, a jovem
que ocupava a cama de armar ao lado da sua lhe mostrou um punhado de gorjetas
que tinha ganho dançando sobre as mesas.
«Esta é a última noite que
dormirei aqui», disse-lhe. «Agora posso pagar meu próprio lugar. Disseram-me
que estão precisando de mais bailarinas. Venha comigo». Procurou no bolso de
sua jaqueta e tirou uma caixa de fósforos. «Aqui está o endereço», disse, lhe
entregando um papelzinho.
Só de pensar nisso, o
estômago do Madeline começou a revirar. Tudo o que conseguiu fazer foi
resmungar: «Vou pensar».
Ela passou o resto da semana
nas ruas procurando trabalho. No final da semana, quando tinha que pagar a
conta no refúgio, procurou em seus bolsos e tirou o papelzinho. Era tudo o que
sobrara.
«Não vou passar esta noite
aqui», disse a si mesma, e se dirigiu à porta.
A fome tem sua maneira de
enfraquecer as convicções.
*
Se Madeline sabia fazer algo,
era dançar. Seu pai lhe tinha ensinado.
Agora, homens da idade de seu
pai a observavam. Ela não prestava atenção nesse detalhe, simplesmente não
pensava nisso. Simplesmente fazia seu trabalho e ganhava seus dólares.
E talvez nunca teria pensado
nisso, se não fosse pelas cartas que o primo lhe levava. Não uma, nem duas, mas
sim uma caixa cheia. Todas dirigidas a ela. Todas de seu pai.
«Seu ex-namorado deve ter
delatado você. Chegam duas ou três destas por semana», queixava-se o primo.
«Mande seu novo endereço». Ah, mas ela não podia fazer isso. Seria encontrada.
Não se atrevia a abrir as cartas.
Sabia o que diziam: que voltasse para casa. Mas se soubesse o que ela estava
fazendo não lhe escreveria.
Pareceu-lhe menos doloroso
não as ler. De maneira que não o fez. Não nessa semana nem na seguinte quando o
primo lhe trouxe mais, e nem na seguinte, quando chegou de novo. Guardou-as no
guarda-roupa do clube onde dançava, organizadas de acordo com a data do carimbo
do correio. Passava seus dedos por cada uma, mas não se atrevia a abri-las.
Na maior parte do tempo
Madeline conseguia controlar suas emoções. Os pensamentos do lar e os
pensamentos de sua vergonha se fundiam no mesmo cantinho do seu coração. Mas
havia ocasiões em que os pensamentos eram muito fortes para conseguir resistir
a eles.
Como aquela vez quando viu um
vestido na vitrine de uma loja. Um vestido da mesma cor que o seu pai lhe tinha
comprado. Um vestido que tinha achado simples demais para ela. Tinha-o vestido
contrariada, e parado em frente ao espelho. «Caramba, está tão alta como eu»,
seu pai havia lhe dito. E quando ele a tocou, ela se enrijeceu.
Ao ver seu cansado rosto
refletido na vitrine da loja, Madeline compreendeu que teria dado mil roupas
somente para sentir seus braços outra vez. Saiu da loja e decidiu não passar
nunca mais por ali.
*
Chegou a época em que as
folhas caem e o ar fica frio.
O correio continuou chegando
e o primo queixando-se à medida que crescia a quantidade de cartas. Ela
continuava decidida a não mandar seu endereço. E continuava sem ler as cartas.
Então, poucos dias antes da
véspera de Natal, chegou outra carta. O mesmo envelope. A mesma cor. Mas esta
não tinha o carimbo. Nem foi entregue pelo primo. Estava sobre a mesa do quarto
de vestir do local onde dançava.
«Faz 2 dias um homem muito
robusto veio e me pediu que lhe desse isto», explicou uma das outras bailarinas.
«Disse que você entenderia a mensagem».
«Ele esteve aqui?», perguntou
ansiosa.
A mulher fez um movimento com
os ombros: «Suponho que deve ser ele».
Madeline engoliu em seco e
olhou o envelope. Abriu-o e extraiu um cartão.
«Sei onde está», leu. «Sei o
que faz. Isso não muda o que sinto. Tudo o que eu disse em cada uma das outras
cartas continua sendo verdade».
«Mas eu que não sei o que ele
me disse», pensou Madeline. Pegou uma carta da parte superior da pilha e a leu.
Em seguida fez o mesmo com uma segunda, e uma terceira. Cada carta tinha a
mesma frase. Cada frase fazia a mesma pergunta.
Depois de alguns minutos o
chão estava cheio de papel e seu rosto banhado em lágrimas.
Antes de ter passado uma
hora, se encontrava a bordo de um ônibus.
«Tomara que chegue a tempo».
Apenas o conseguiu.
Os familiares estavam
começando a retirar-se. Joe estava ajudando a avó na cozinha quando seu irmão o
chamou: «Joe, tem alguém aqui que quer ver você».
Joe saiu da cozinha e se
deteve. Em uma mão, a moça sustentava uma mochila. E na outra, segurava um
cartão. Joe viu a pergunta em seus olhos.
«A resposta é
"sim"», disse a seu pai. «Se o convite ainda se mantém, a resposta é
"sim!"».
Joe engoliu emocionado. «Ah,
claro que sim! O convite ainda se mantém!»
E assim, os dois voltaram a
dançar nessa véspera de Natal!
Sobre o chão, perto da porta,
permanecia jogada uma carta aberta dirigida a Madeline e o rogo de seu pai:
«Quer vir para casa e dançar
com seu papai outra vez?»
LUCADO, Max. Ele Escolheu os Cravos. 5.
ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2003. p. 57 - 66.