terça-feira, 7 de maio de 2013

Não te abandonarei


Madeline, apenas cinco anos, pulou no colo de seu pai.
— Você já terminou de comer? — pergunta ele.
Ela sorri e bate com a mãozinha na barriga.
— Não cabe mais nada.
— Comeu o bolo da vovó?
— Um pedaço inteirinho!
Joe olhou para sua mãe, que estava no outro lado da mesa.
— Parece que estamos todos satisfeitos. Não poderemos fazer mais nada esta noite a não ser ir para a cama.
Madeline pôs suas pequenas mãozinhas nos lados do rosto de seu pai.
— Mas papai, hoje é véspera de Natal. Disse que poderíamos dançar.
Joe fingiu não se lembrar.
— Disse isso? Não lembro de haver dito nada sobre dançar.
A vovó sorriu e passou a mão pela cabeça da menina enquanto começava a recolher as coisas da mesa.
— Mas papai — rogou Madeline —, nós sempre dançamos na véspera de Natal. Só você e eu, lembra?
Um sorriso se desenhou sob o grosso bigode do pai.
— É claro que lembro, querida. Como poderia esquecer?
E dizendo isso, ficou em pé, tomou a mãozinha dela na sua e, por um momento, só por um momento, sua esposa estava viva de novo e os dois entravam no quartinho para passar juntos outra véspera de Natal como outras tantas que tinham passado, dançando até a madrugada.
Teriam podido dançar o resto de suas vidas, mas veio a inesperada gravidez e as complicações. Madeline sobreviveu, mas sua mãe não. E Joe, o rude açougueiro de Minnesota, ficou sozinho para criar Madeline.
— Vêm papai — lhe disse, puxando-o pela mão —. Dancemos antes de que cheguem.
Ela tinha razão. Logo soaria a campainha da porta e os familiares encheriam a casa e a noite seria já algo do passado.
Mas por enquanto, só estavam papai e Madeline.

*

A rebeldia atacou o mundo de Joe como uma tempestade de neve a Minnesota.
Quando já tinha idade suficiente para dirigir um automóvel, Madeline decidiu que era suficiente adulta para dirigir sua própria vida. E essa vida não incluía seu pai.
«Devia ter imaginado», diria Joe mais tarde, «mas por minha vida que não o fiz». Não soubera o que fazer. Não sabia como lidar com narizes com piercings nem com blusas apertadas. Não entendia de baladas nem de notas ruins. E, o que é pior, não sabia quando falar e quando guardar silêncio.
Ela, por outro lado, sabia tudo. Quando falar com seu pai: Nunca. Quando ficar calada: Sempre. Entretanto, as coisas eram inversas com seu amigo da rua, aquele moço fracote e tatuado. Não era um bom moço, e Joe sabia.
Não ia permitir que sua filha passasse a véspera de Natal com esse moço.
«Passará a noite conosco, senhorita. Comerá o bolo da vovó na ceia em sua casa. Celebraremos juntos a véspera de Natal».
Embora estivessem sentados à mesma mesa, perecia que estavam em pontos diferentes da cidade. Madeline brincava com a comida sem dizer uma palavra. A avó tentava conversar com Joe, mas ele não estava com humor para conversar. Uma parte dele estava furiosa; a outra parte estava desconsolada. E o resto dele teria dado qualquer coisa para saber como falar com esta menina que antigamente se sentava em seus joelhos.
Chegaram os familiares trazendo com eles um bem-vindo final ao desagradável silêncio. Com a sala cheia de ruídos e gente, Joe se manteve em um extremo e Madeline no outro.
«Ponha música, Joe», lembrou-lhe um de seus irmãos. Assim fez.
Pensando que seria uma boa idéia, dirigiu-se para onde estava sua filha: «Dançaria com seu papai esta noite?»
Pela forma como ela bufou e se voltou, poderia se pensar que lhe havia falado algo insultante. Diante da vista de toda a família, dirigiu-se para a porta da rua, abriu-a, e se foi, deixando seu pai sozinho.
Muito sozinho.

*

Madeline voltou essa noite mas não por muito tempo. Joe nunca falhou com ela, para que ela fosse embora. Depois de tudo, o que significa ser filha de um açougueiro? Em seus últimos dias juntos, ele fez tudo o que pôde.
Cozinhou a comida favorita dela. Ela não tinha apetite.
Convidou-a para ir ao cinema. Ela se fechou em seu quarto.
Comprou-lhe um vestido novo. Ela não agradeceu.
Até que chegou aquele dia primaveril em que ele saiu cedo de seu trabalho para estar em casa quando ela chegasse da escola.
Desde esse dia, ela nunca mais voltou para casa.
Um amigo a viu perto da estação de ônibus, junto com seu namorado. As autoridades confirmaram a compra de duas passagens para Chicago; para onde foram dali, ninguém sabe.

*

O rapaz magrelo das tatuagens tinha um primo, que trabalhava no turno da noite em uma loja ao sul de Houston. Por uns poucos dólares por mês permitia aos fugitivos permanecer em seu apartamento de noite, mas durante o dia tinham que sair dali.
Não havia problemas. Eles tinham grandes planos. Ele seria um mecânico e Madeline procuraria trabalho em uma loja de departamentos.
Obviamente, ele não sabia nada de automóveis, e ela muito menos sobre como conseguir um trabalho, mas as pessoas não pensam nessas coisas quando estão intoxicadas de liberdade.
Depois de duas semanas, o primo mudou de opinião. E no dia em que lhes comunicou sua decisão, o magrelo tatuado também deu a conhecer a sua. Desse modo, Madeline se encontrou com a noite pela frente, sem ter um lugar onde dormir nem uma mão que a sustentasse.
Foi a primeira de uma série de muitas noites assim.
Uma mulher no parque lhe falou de um lugar para desamparados perto da ponte. Por uns poucos dólares ela poderia obter um prato de sopa e uma cama de armar.
Uns poucos dólares era tudo o que ela tinha. Usou sua mochila como travesseiro e sua jaqueta como manta. O quarto era tão barulhento que não conseguia dormir. Madeline virou a cabeça para o lado da parede e pela primeira vez em muitos dias, pensou no rosto barbudo de seu pai e em como lhe dava um beijo todas as noites. Mas quando as lágrimas quiseram brotar de seus olhos, resistiu ao choro. Colocou a lembrança bem fundo em sua memória e decidiu não voltar a pensar em sua casa.
Tinha chegado tão longe que já era impossível voltar.
Na manhã seguinte, a jovem que ocupava a cama de armar ao lado da sua lhe mostrou um punhado de gorjetas que tinha ganho dançando sobre as mesas.
«Esta é a última noite que dormirei aqui», disse-lhe. «Agora posso pagar meu próprio lugar. Disseram-me que estão precisando de mais bailarinas. Venha comigo». Procurou no bolso de sua jaqueta e tirou uma caixa de fósforos. «Aqui está o endereço», disse, lhe entregando um papelzinho.
Só de pensar nisso, o estômago do Madeline começou a revirar. Tudo o que conseguiu fazer foi resmungar: «Vou pensar».
Ela passou o resto da semana nas ruas procurando trabalho. No final da semana, quando tinha que pagar a conta no refúgio, procurou em seus bolsos e tirou o papelzinho. Era tudo o que sobrara.
«Não vou passar esta noite aqui», disse a si mesma, e se dirigiu à porta.
A fome tem sua maneira de enfraquecer as convicções.

*

Se Madeline sabia fazer algo, era dançar. Seu pai lhe tinha ensinado.
Agora, homens da idade de seu pai a observavam. Ela não prestava atenção nesse detalhe, simplesmente não pensava nisso. Simplesmente fazia seu trabalho e ganhava seus dólares.
E talvez nunca teria pensado nisso, se não fosse pelas cartas que o primo lhe levava. Não uma, nem duas, mas sim uma caixa cheia. Todas dirigidas a ela. Todas de seu pai.
«Seu ex-namorado deve ter delatado você. Chegam duas ou três destas por semana», queixava-se o primo. «Mande seu novo endereço». Ah, mas ela não podia fazer isso. Seria encontrada.
Não se atrevia a abrir as cartas. Sabia o que diziam: que voltasse para casa. Mas se soubesse o que ela estava fazendo não lhe escreveria.
Pareceu-lhe menos doloroso não as ler. De maneira que não o fez. Não nessa semana nem na seguinte quando o primo lhe trouxe mais, e nem na seguinte, quando chegou de novo. Guardou-as no guarda-roupa do clube onde dançava, organizadas de acordo com a data do carimbo do correio. Passava seus dedos por cada uma, mas não se atrevia a abri-las.
Na maior parte do tempo Madeline conseguia controlar suas emoções. Os pensamentos do lar e os pensamentos de sua vergonha se fundiam no mesmo cantinho do seu coração. Mas havia ocasiões em que os pensamentos eram muito fortes para conseguir resistir a eles.
Como aquela vez quando viu um vestido na vitrine de uma loja. Um vestido da mesma cor que o seu pai lhe tinha comprado. Um vestido que tinha achado simples demais para ela. Tinha-o vestido contrariada, e parado em frente ao espelho. «Caramba, está tão alta como eu», seu pai havia lhe dito. E quando ele a tocou, ela se enrijeceu.
Ao ver seu cansado rosto refletido na vitrine da loja, Madeline compreendeu que teria dado mil roupas somente para sentir seus braços outra vez. Saiu da loja e decidiu não passar nunca mais por ali.

*

Chegou a época em que as folhas caem e o ar fica frio.
O correio continuou chegando e o primo queixando-se à medida que crescia a quantidade de cartas. Ela continuava decidida a não mandar seu endereço. E continuava sem ler as cartas.
Então, poucos dias antes da véspera de Natal, chegou outra carta. O mesmo envelope. A mesma cor. Mas esta não tinha o carimbo. Nem foi entregue pelo primo. Estava sobre a mesa do quarto de vestir do local onde dançava.
«Faz 2 dias um homem muito robusto veio e me pediu que lhe desse isto», explicou uma das outras bailarinas. «Disse que você entenderia a mensagem».
«Ele esteve aqui?», perguntou ansiosa.
A mulher fez um movimento com os ombros: «Suponho que deve ser ele».
Madeline engoliu em seco e olhou o envelope. Abriu-o e extraiu um cartão.
«Sei onde está», leu. «Sei o que faz. Isso não muda o que sinto. Tudo o que eu disse em cada uma das outras cartas continua sendo verdade».
«Mas eu que não sei o que ele me disse», pensou Madeline. Pegou uma carta da parte superior da pilha e a leu. Em seguida fez o mesmo com uma segunda, e uma terceira. Cada carta tinha a mesma frase. Cada frase fazia a mesma pergunta.
Depois de alguns minutos o chão estava cheio de papel e seu rosto banhado em lágrimas.
Antes de ter passado uma hora, se encontrava a bordo de um ônibus.
«Tomara que chegue a tempo».
Apenas o conseguiu.
Os familiares estavam começando a retirar-se. Joe estava ajudando a avó na cozinha quando seu irmão o chamou: «Joe, tem alguém aqui que quer ver você».
Joe saiu da cozinha e se deteve. Em uma mão, a moça sustentava uma mochila. E na outra, segurava um cartão. Joe viu a pergunta em seus olhos.
«A resposta é "sim"», disse a seu pai. «Se o convite ainda se mantém, a resposta é "sim!"».
Joe engoliu emocionado. «Ah, claro que sim! O convite ainda se mantém!»
E assim, os dois voltaram a dançar nessa véspera de Natal!
Sobre o chão, perto da porta, permanecia jogada uma carta aberta dirigida a Madeline e o rogo de seu pai:
«Quer vir para casa e dançar com seu papai outra vez?»

LUCADO, Max. Ele Escolheu os Cravos. 5.
ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2003. p. 57 - 66.

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